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Brasil e as chances de absolvição de seus quatro pecados originais e capitais

ECONOMIA

 

Por Octavio de Barros, diretor e economista-chefe do Bradesco.

 


O Brasil tem um grande desafio nessa nova fase em que se encontra. Buscar a absolvição simultânea de seus quatro pecados originais e capitais, que caracterizam a sua trajetória econômica há décadas. Não é tarefa fácil porque, apesar desses pecados impeditivos de um crescimento sustentável e de uma economia minimamente previsível, o País conseguiu registrar algumas histórias temporárias de sucesso que geraram a ilusão de que “agora vai”.

Portanto, sempre se acalenta a ideia de que “no Brasil as coisas são diferentes” e que não precisamos ser tão rigorosos assim com as políticas reconhecidamente necessárias. Mesmo quando há algum consenso sobre o que precisa ser feito, pouco se avança como se os problemas pudessem ser solucionados com o simples passar do tempo. Pois é, justamente essa tolerância com o “mais ou menos” e a procrastinação tentadora têm nos levado a crises recorrentes e a taxas de crescimento que não se sustentam.

Todos os ajustes macroeconômicos, pelos quais passou a economia brasileira, têm sido incompletos porque recorrentemente surgem restrições ou posições políticas ou corporativistas que forçam rumos alternativos ou atalhos que impedem o ingresso do País em uma nota de relativa normalidade. Claro que sempre haverá questionamento sobre o que vem a ser a noção de normalidade, mas aqui me refiro, pura e simplesmente, a alguma previsibilidade decisória dos agentes econômicos.

Importante chamar a atenção de que essa forte demanda por atalhos ou por posições curto-prazistas ou corporativas está longe de ser um monopólio dessa ou daquela corrente ideológica. Em governos de direita, de esquerda ou de centro, esses pecados originais estão presentes e cabe a pergunta se o País, dessa vez, será capaz ou não de ser absolvido pelo menos de parte desses pecados.

O que chamamos aqui de pecados originais e capitais poderia ser resumido da seguinte forma: falta absoluta de disciplina, de previsibilidade e de foco na eficiência, produtividade e competitividade de médio e longo prazos.

Tentaremos resumir aqui os quatro pecados capitais e originais deixando claro que a nossa posição a respeito é um misto de saudável ceticismo com a confiança de que teremos alguma absolvição, com ou sem alguma passagem pelo purgatório, de um ajuste duro.

Primeiro pecado original e capital: Falta de disciplina e governança orçamentária

Brasil não tem qualquer tradição de disciplina orçamentária. Isso significa que, historicamente, as despesas públicas no Brasil não são balizadas por critérios rigorosos de governança. As despesas públicas como proporção do PIB crescem ininterruptamente há quase três décadas e, consequentemente, a carga tributária segue a mesma trajetória. Afinal essa despesa crescente precisa ser paga. Além disso, a trajetória perigosa do endividamento público explica essa falta de governança fiscal ou orçamentária.

Colocar a culpa na carga de juros como causa dos problemas fiscais é como colocar o carro à frente dos bois. O pecado original é a falta de disciplina orçamentária que, em alguma medida, também está presente na gestão dos orçamentos familiares no Brasil, gerando a permanente percepção de insolvência que amplia os riscos e custos financeiros dessa incerteza.

No momento em que a nova equipe econômica propõe um teto para o crescimento anual do gasto primário no Brasil surge, pela primeira vez na história do País, a chance de que se inaugure uma regra constitucional inédita que garantirá que as despesas públicas primárias, como proporção do PIB, não mais aumentarão e poderão cair ao longo do tempo. Isso abrirá espaço, também de forma inédita, para o endereçamento de uma reforma tributária, hoje virtualmente impossível sem o controle dos gastos.

Essa é a mãe de todas as reformas no Brasil. Mais importante do que todas as demais reformas, porque é um ponto de partida para uma maior racionalidade no gasto público. Sejamos realistas, nunca haverá debate sério sobre o orçamento na sociedade sem uma regra prévia que estabeleça um teto para o crescimento do orçamento. O teto terá um crucial papel didático. Achamos que a PEC do teto do gasto será aprovada e talvez, a partir disso, poderemos falar em uma mudança na economia política do orçamento no Brasil. A absolvição é possível.

 

Segundo pecado original e capital: Amplo desprezo pela noção de eficiência alocativa de recursos públicos

Interesses corporativos e lobbies setoriais dificultam o uso racional de recursos públicos quando isso impede uma saudável discussão sobre a alocação dos escassos recursos orçamentários. Ou seja, no Brasil nunca houve espaço para uma efetiva discussão sobre a qualidade do gasto público. Quando todos os gastos, sejam bons gastos como péssimos gastos, são sempre aprovados, não há debate possível sobre a eficiência das despesas e sobre as reais prioridades nacionais.

Na nossa visão, todo gasto público, seja social ou não social, deve ser escrutinado para que seja eficiente e atinja o seu foco e gere externalidades positivas. Com a implantação de um teto para o gasto público total, quando um político ou governante apresentar uma proposta que implicará necessariamente o aumento novo de despesas, alguém lhe perguntará qual outra despesa será cortada para a sua despesa proposta entrar no orçamento agora limitado. Isso naturalmente gerará surpresa e favorecerá um debate político democrático sobre a qualidade do gasto porque todos dirão que o seu gasto é mais relevante do que o do outro político ou governante. Isso seria uma grande transformação positiva.

Entendemos que, mesmo no caso controverso sobre a indexação dos gastos de saúde e de educação, equivocadamente vinculados à receita líquida corrente, esses passarão a ser julgados não pelo montante gasto, mas pela sua eficiência. A literatura econômica demonstra que a má alocação de recursos é um dos principais determinantes que diferencia as nações em termos de produtividade e crescimento econômico.

Durante décadas, o Brasil fez uma opção por benefícios seletivos, subsídios e cunhas que distorceram o debate sobre a alocação ótima de recursos. Da mesma forma, sempre fomos o país da tentação à chamada “marcha forçada” que nos leva sempre de volta à fronteira da irresponsabilidade fiscal. Se conseguirmos em algum momento a absolvição desse pecado, há um imenso manancial de produtividade a ser explorado sem que seja necessário aumentar o gasto público total.

 

Terceiro pecado original e capital: Tolerância com inflação “mais ou menos alta”

Décadas de inflação elevada, hiperinflação, superinflação fizeram com que se consolidasse no Brasil a ideia de que não tem jeito porque essa é a nossa sina ou que não é um problema relevante o fato de o Brasil sempre ter uma inflação maior do que a grande maioria dos países, mesmo comparando com aqueles com iguais níveis de renda. Mesmo depois da implantação do regime de metas de inflação, raríssimos foram os momentos em que a inflação se circunscreveu próximo ao centro da meta.

Desde o início do regime de metas, faz 17 anos, a inflação média mostrou alta acima de 6%, mesmo em períodos de forte recessão econômica como nos últimos dois anos. É verdade que estamos falando do país mais indexado do mundo nos contratos em geral e, mais particularmente, nos salários. Esse também é um pecado original que se fortaleceu na época da hiperinflação, que não se justificaria mais hoje em dia.

A legislação salarial no Brasil incentiva a destruição de empregos na medida em que prioriza o reajuste anual dos salários indexado pela inflação passada. Uma reforma trabalhista que fizesse prevalecer o negociado sobre o legislado ajudaria tremendamente o combate à inflação. Seria fundamental que essa reforma avançasse.

Enquanto a desindexação não avança, cabe ao Banco Central ser muito determinado no cumprimento da meta de inflação e não cair na histórica tentação acomodatícia tão frequente. Não é missão de Banco Central se preocupar com crescimento econômico. Sua missão é outra. Seu trabalho bem feito será decisivo para a retomada consistente futura. Mas seu foco é a inflação baixa e estabilidade financeira. Já é muita coisa.

Inflação baixa é a maior prioridade nacional. Juros estruturalmente menores só teremos com inflação baixa. Não há atalhos possíveis nem pré-condições como, por exemplo, as de um câmbio mínimo ideal ou uma taxa básica máxima tolerável, para se avançar no ajuste macro.

Entendemos que o Banco Central atual está determinado a não desperdiçar a severa recessão atual para trazer a inflação para a meta. Em outras palavras, seria um desperdício encerrar o ciclo recessivo atual com a inflação ainda acima da meta. O Banco Central atual sugere que não é mais possível tolerar uma inflação “mais ou menos alta” e sabe que para se reduzir o custo do capital no Brasil em bases realmente sustentáveis é fundamental ser firme agora e manter a inflação baixa. Saberá iniciar o ciclo de afrouxamento quando as condições estiverem presentes. Há boas chances de absolvição.

 

Quarto pecado original e capital: Defesa do protecionismo comercial e da economia fechada

O protecionismo está impregnado na dinâmica brasileira há décadas. É o país mais protecionista do mundo dentre as 40 nações mais ricas sob qualquer critério. O argumento frequentemente utilizado de que, para abrir a economia é necessário antes superar dezenas de mazelas nacionais, aprofunda o atraso no crescimento da produtividade e na melhora da competitividade.

Consideramos que, ao contrário do que frequentemente se sustenta, o País precisaria urgentemente dar sinais até mesmo unilaterais no plano da abertura. Esse é o lado do ajuste brasileiro que somos menos otimistas quanto à absolvição pela postura defensiva exibida pelo atual governo. Entendemos que há muito mais espaço para se avançar na abertura depois da depreciação observada do Real. Esse pecado original é similar ao observado no plano fiscal. Todos se declaram a favor da mudança, desde que não afete a sua área de atuação.

Há duas frequentes falácias contra a abertura da economia brasileira: (1) a “falácia da reciprocidade”, que sugere que só dá para abrir a economia quando, por exemplo, o protecionismo agrícola europeu acabar ou argumentos dessa natureza; (2) a falácia do ”só quando”, que defende a abertura só quando a logística for boa, a reforma tributária realizada, a reforma trabalhista completada e a infraestrutura for adequada etc.

Na nossa visão, se o País superasse esse pecado original, teríamos uma economia mais integrada globalmente às cadeias globais de valor. O País precisa urgentemente de acordos bilaterais e regionais, reduzindo a importância do multilateralismo na política externa brasileira. Isso geraria um forte impulso de produtividade e na própria competitividade. Além disso, facilitaria enormemente o trabalho do Banco Central devido ao aumento da competição.

 

Conclusão

A falta de paciência sempre nos levou a ajustes inconclusos. Dessa vez, esperamos que seja possível ir até o fim do ajuste proposto pela equipe econômica atual. O Brasil precisa  transmitir ao mundo a ideia de que, dessa vez, pode promover um ajuste que tenha um caráter intertemporal.

No dia da absolvição desses pecados, serão muito maiores as chances de conquistarmos taxas de crescimento mais sustentáveis, maior previsibilidade macroeconômica e melhora tangível na área social. Não podemos esperar o tempo político ideal para implementar esses ajustes. Sem foco e determinação, não dá para falar em absolvição (mesmo com direito a purgatório) desses quatro pecados originais capitais. O ajuste tem que ser completo.  Caso se repitam os mesmos erros de todas as tentativas incompletas de ajuste do passado, não haverá avanços e tampouco o reencontro com taxas de crescimento maiores no PIB potencial brasileiro.

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